blog da Selma
A terceira visita a casa de João Gilberto foi muito emocionante, como todas, mas também porque desta vez ficamos hospedados em um apartamento de João, na cobertura de um prédio de 30 andares. João morava no Leblon e perto mantinha esse flat que emprestou para nós, Fernando Faro e eu. Ficamos hospedados ali três dias; era o mesmo prédio onde Edinha Diniz vivia, alugava outro apartamento. Ela fazia a ponte entre Faro e João e esteve em todas as visitas conosco.
João não gostava de viver nesse apartamento. Provou por um tempo, mas segundo ele, o lugar tinha alguns defeitos, como por exemplo, muito barulho: o som da avenida subia, um barulho da rua inacreditável. Também não gostava do chuveiro porque o gás ficava fora do banheiro, o controle da temperatura do chuveiro era na cozinha. Outra coisa que o incomodava era que de um certo ângulo da cobertura -- tinha uma área aberta em cima com uma pequena piscina vazia, você poderia ver ou ser visto pelos vizinhos das áreas dos apartamentos ao lado. E, pior, olhando para trás poderia ver o Corcovado. Ele tinha aflição de grandes estátuas, grandes monumentos, inclusive do Corcovado. Aí nos contou da fobia que sentiu quando viajou com Miúcha ao México e começou a avistar as pirâmides, grandes construções históricas... dizia a ela: "vamos voltar, vamos voltar!". Apesar de termos rido muito da história, ele realmente nos convenceu de que era um certo pavor, um sofrimento.
Enfim, o apartamento onde ficamos era muito simples; na sala havia um sofá de couro preto, paredes verdes, TV, uma mesa. Na parte de cima havia uma pequena área coberta, com sofá, e a área aberta, com vista esplêndida. Os dois pisos eram ligados por uma escada em caracol, estreita, vazada e pouco segura. Como ele não queria mais usar esse apartamento, emprestava aos amigos.
Chegamos no Rio de Janeiro na sexta-feira e João falou com Faro pelo telefone, não estava bem disposto. Combinamos o encontro para o dia seguinte. Isso foi em junho, estava frio, era meu aniversário.
No dia da vista nos encontramos com Edinha Diniz e fomos a um restaurante, jantar oferecido por João, mas ele não quis ir. Eu, Faro e Edinha jantamos em um ótimo japonês no Leblon. Por volta das 10 da noite, fomos até o apartamento do João, levando seu vinho predileto e chocolates. Ele nos recebeu com a simpatia de sempre e disse que não quis jantar porque estava indisposto.
Já tínhamos um pouco mais de liberdade ou intimidade, era a terceira vez. Esta foi um pouco diferente porque era um sábado, e João queria assistir às lutas na televisão. Então, nos preparamos para assistir às lutas. Estava entusiasmado, alegre; ficou explicando qual era a beleza da luta livre, falava com encantamento. Para mim era difícil entender aquele contraste.
Essa foi a noite em que ele menos cantou. Conversamos, assistimos muita luta livre e João tocou depois, na madrugada, a pedido do Faro, algumas poucas músicas. Antes falou sobre política, sobre os Estados Unidos, sobre seus filhos, amigos, histórias do passado, projetos futuros.
Então ficamos com fome, não tinha mais o refrigerante predileto dele, que era guaraná de laranja. Fomos eu, Edinha e um rapaz que trabalhava para o João, até o supermercado. Faro e João ficaram conversando na sala.
Na volta fizemos lanches de pão com queijo, João comeu apenas presunto puro, e tocou um pouco de violão.
O que me chamou a atenção foi que ele parecia estar, desta vez, tocando apenas para agradar o amigo; foi a primeira e única vez que vi o João Gilberto cantar e tocar de uma maneira, vamos dizer, meio despretensiosa, mais à vontade. Mesmo assim, era melhor do que qualquer pessoa tocando e cantando. Ele não perdeu a afinação, mas não estava com aquela concentração e o prazer de sempre, como nas duas visitas anteriores.
Então, lá pelas 4 da manhã, resolvemos ir embora; ele chamou o taxista que costumava entrar na garagem. Eu estava com uma blusa de renda, e sentindo um pouco de frio. Ele disse: "Selminha, você substimou o frio do Rio de Janeiro!", e riu. Pediu a Edinha que pegasse um casaco dele, que foi até o quarto e me trouxe um casaquinho preto de lã fina, do João. Eu vesti aquilo bastante emocionada... para uma fã isso é coisa realmente deliciosa. Ele foi muito gentil, insistiu para que eu usasse e pediu para que eu deixasse com a Edinha, no flat.
Voltamos de táxi, eram poucos quarteirões. O que havia de pessoal dele no apartamento em que estávamos hospedados era apenas uma camiseta branca dobrada com uma escova de dentes em cima. No domingo nos preparávamos para ir embora, quando João telefonou pro apartamento. Eu atendi, e ele me disse "Eu gostaria que vocês viessem hoje, porque a Miúcha vem. Nós vamos fazer uma roda de samba. Hoje estou mais disposto, ontem eu não estava bem". Depois falou com o Faro, que explicou que não podia ficar no Rio porque tinha uma gravação na TV Cultura na segunda-feira cedo.
Infelizmente, mais do que infelizmente, não fomos. Hoje sinto uma dor quando penso que poderíamos ter passado a quarta noite ouvindo João Gilberto, a lenda, cantando no sofá ao lado, com seu pijama elegante. Mas as obrigações da vida não permitiram.
Escrevo as lembranças, que estão ainda muito vivas, para evitar esquecer. Isto foi por volta de 2004.
Mais lembranças, porque vamos embora e ficam as cartas e as memórias.
Os encontros com João Gilberto foram uma aula de música, de humildade, de respeito pelos autores antigos. Em seu apartamento no oitavo andar, no Leblon, a mesa de centro da sala era um enorme baú. Ele disse: "Escrevo as harmonias, estudo. Tenho esse baú todo cheio de partituras." Abriu o baú: letras e letras de música escritas em azul, com cifras escritas em vermelho. Estavam organizadas, as cifras claras, destacadas; os símbolos dos acordes tão falados de João Gilberto, tão discutidos, imitados. Ele disse que não precisava ler nada pra tocar algo que conhecesse; podia acompanhar qualquer música, em qualquer tom. Mas as escolhas dos acordes, muito testadas por ele, eram escritas, pois podia esquecer e tocar cada vez de um jeito diferente.
João Gilberto buscava a harmonia ideal; o canto ideal, a expressão, a respiração, as divisões ideais.
Dizia que as pessoas que falavam tanto do que ele fazia não procuravam fazer o que ele fazia. Usavam portamento, ele evitava:“no jazz tudo bem”, mas no samba… Como quem diz: "Me admiram, mas não me imitam”.
"Cante uma música, Selminha, pode ser qualquer uma, você escolhe, eu te acompanho."
Meu Deus, é isso mesmo?, nenhuma música me veio à cabeça. Ele perguntou: "Conhece o Largo da Lapa?" A Gracinha (Gal) cantava isso tão bem… Eu conhecia, mas não sabia a letra. Ele cantou e tocou um trecho. Miúcha, que estava junto nesse dia, disse: "Então vamos cantar essa de novo." Ele tinha acabado de cantar "Eu sambo mesmo" de Janet de Almeida e Haroldo Barbosa, que gravou no disco "João". Comecei a cantar junto, e no refrão “é... só no samba que eu sinto prazer", ele começou a abrir vozes. Mas eu estava tão emocionada que minha voz vibrava. Quando acabou ele disse algo como “deixei de usar o vibrato porque ele não ajuda na clareza da melodia. A emissão limpa e lisa é melhor para o entendimento da música e da letra." Quase falei: "Eu não quis fazer vibrato nenhum, saiu assim porque minha voz está emocionada..." Mas não falei. Por dentro eu gritava “abri vozes com João Gilberto!”.
Em nenhum momento ele dizia: "Eu quis romper com isso ou aquilo, procurei um jeito moderno de cantar ou quis cantar diferente do Orlando Silva, ou não gosto do que eles faziam." O foco era sempre a reverência à música popular, o respeito às palavras, a clareza da melodia, a expressão sem exageros, sem sobras, a beleza das escolhas.
Isso tudo foi no segundo encontro em seu apartamento, depois de um belo jantar, depositado no elevador de serviço, de um dos seus restaurantes preferidos: couve, carne de porco e tutu.
Interfonou para o porteiro colocar por favor um limão no elevador porque estava fazendo falta.
A lembrança maior da aparência de sua cozinha, além dos azulejos brancos e vermelhos com desenhos de galinhas, é da quantidade enorme de garrafas de água mineral sobre uma bancada; dezenas delas, e também de refrigerantes de sabor laranja. A hospitalidade e o carinho de João foram surpreendentes e uma grande lição para mim: o quanto não devemos acreditar em boatos ou fofocas. Pediu palmitos frescos na brasa, um luxo inesquecível para mim, pois lembrou que sou vegetariana.
Sofri com os lagostins na primeira visita, que acabei comendo pra não chatear o anfitrião, até que confessei ser vegetariana quando colocaram o segundo bicho em meu prato.
Sobre a segunda visita lembro também de sua paixão por chocolate, por gatos, por Orlando Silva e pelos grupos vocais. Contou que participou dos Anjos do Inferno por pouco tempo mas que ninguém falava sobre isso... falavam sempre só dos Garotos da Lua. E ficava chateado quando lia que expulsaram ele do grupo: não, ele saiu porque quis. Falou de sua admiração por Jonas, líder dos Garotos da Lua, e de seu talento como compositor, então cantou "Rosinha" e "Eu e meu coração".
Foram muitas horas de conversa nos três encontros, por volta de 2005, 2006. O primeiro foi o mais longo, das 9h da noite às 4h30 da manhã. No segundo, chegamos um pouco mais tarde, Miucha estava estava junto, e saímos um pouco mais cedo. No terceiro encontro chegamos ainda mais tarde e saímos quase ao amanhecer. Sempre eu, Fernando Faro e a querida Edinha Diniz, que hoje mora na Bahia.
Me esforço sempre pra lembrar seus ensinamentos e tudo que falou; falava muito, muito mesmo, cantava bastante também.
Durante a madrugada tomava água e comia presunto. Dizia que às vezes assistia às missas às 6h00 da manhã na televisão, antes de dormir, e fazia exercícios de respiração, yoga, pranaymas, e dizia se sentir cada vez mais espiritualizado, cada vez mais com essa necessidade. Saltava dos assuntos musicais para outros, os mais diversos: política, a vida nos Estados Unidos, a diferença entre Rio e São Paulo, os amigos, decepções, seus shows no Japão, pessoas queridas, pessoas não tão queridas. Mas o tom geralmente era amigável e amoroso; não se prendia muito tempo em falar mal de alguém ou se queixar de algo. Era uma explosão de informações, de música, histórias, lembranças e impressões. Um homem (quase) normal, inteligente e sensível acima da média. Destacou os músicos Luiz Bonfá, Tom Jobim, Chet Baker, Ella Fitzgerald, Marino Pinto, Gal Costa, Vinicius de Moraes, Rita Lee, Herivelto Martins. Disse que o Mário Reis não tinha sido grande influência para ele como alguns diziam. Disse que não gostava de cantar músicas com as palavras "morte" ou "morrer"; as exceções eram "Sinfonia do Rio de Janeiro" e "Guacyra" (e se ela não quiser eu vou morrer cheio de fé); gostava muito da música "Morrer de Amor", mas nunca gravaria uma música com esse nome. Falava com paixão sobre as palavras. O geminiano João, antes da terceira visita, ligou pro Faro, e esse falou: "Hoje é aniversário da Selma, fale com ela." E passou o telefone pra mim. João, meio sem graça, me deu os parabéns e disse: "Geminiana como eu!" Eu disse: "Não, sou canceriana...".
Senti raiva de ser canceriana; bem que eu podia ser geminiana como ele estava comemorando.
Da terceira visita falo depois.
O quadro em branco, tela emoldurada em destaque no centro do móvel que ocupava toda a parede, chamou atenção logo que entrei na sala de João Gilberto. Depois de algumas horas, o que parecia estranho ganhou sentido: representava o silêncio. O vazio, onde tudo se inicia.
Eu esperava conhecer um gênio excêntrico, por todo o folclore que o envolvia, e conheci um homem comunicativo e hospitaleiro, vibrante, expressivo, atento.
Tudo alí tinha sentido: A mesa lotada de pacotes do correio, as fotos dos filhos, as partituras, o violão sempre por perto.
"Selminha, vou fazer um drink pra você. Mas é sem álcool.” Então pegou um daqueles copos grandes, encheu de gelo e completou com guaraná de laranja, dizendo, eu gosto da cor, fica bonito. Me entregou sorrindo.
Nos ofereceu, a mim, a Fernando Faro e a Edinha Diniz, os últimos goles de seu licor predileto, o vinho e o prato prediletos.
Quer saber os segredos de seu violão? “É assim, encadeando os acordes como se cada voz fosse de um cantor, atenção para a voz mais aguda…”, e ia tocando e mostrando. Não tinha segredo. Cantar? é treino. É um músculo. Não se deve atrapalhar a melodia, o entendimento da letra.
O apartamento era seu escritório, dizia. Trabalhava mais que oito horas por dia. "Eu não sou gênio, gênio foi o Bach.”.
Às vezes deixava o violão no sofá e falava, andando pela sala, com muita desenvoltura e carinho, dos amigos, das lembranças, dos compositores, dos grupos vocais: "a gravação de 'Trem de Ferro' dos Quatro Ases e Um Coringa é muito superior à minha… o arranjo com aqueles vocais imitando um trem…"
Tocou sua parceria com Donato, "Minha saudade". Contou sobre o projeto de Arnaldo de Souteiro para gravar um songbook com sua obra; falou dele com admiração e carinho, como falou de outros amigos e artistas, Carlos Coqueijo, (compositor de É preciso perdoar), a dupla Palmyra e Levita - o único violonista que ouvi João elogiar nos três encontros em que tive a sorte e a honra de estar presente.
Pouco tempo antes havia se apresentado no Japão. No final de um dos shows a platéia aplaudiu por 40 minutos. “Sabe o que é ficar agradecendo por 40 minutos, é quase o primeiro tempo de um jogo de futebol", comparou, emocionado. E o som, que maravilha… e o técnico de som japonês, seu preferido…
Com alguma mágoa disse não ser compreendido quando era exigente com a qualidade do som. Queria o melhor para o público, não somente para ele. O equipamento tinha que captar todo o seu trabalho, as sutilezas, os graves e agudos de sua voz, a clareza de seu violão. Tanta dedicação para ser tudo destruído por cabos e microfones mal equilibrados?
O Brasil nunca entendeu a importância de João Gilberto. E me entristece saber que ele partiu triste, com tantas coisas ruins à sua volta. João era um progressista. Se engana quem acha que era alienado; era muito bem informado, e tinha um apreço especial pelo povo do nordeste.
A última música que ouvi João cantar foi Sinfonia do Rio de Janeiro, de Tom Jobim e Billy Blanco, depois de uma longa sessão de luta livre na TV, em um final de madrugada:
"Eu quero morrer num dia de sol
Na plenitude da vida
Tão bela e querida
Que acaba amanhã, amanhã
Quem sabe eu voltarei outra vez
Num raio claro de sol
Num pingo de chuva
Que cai de manhã
No meu Rio"
Para reviver e evitar esquecer dos detalhes, estou colhendo impressões e lembranças das três visitas que fiz a João Gilberto, a convite de Fernando Faro e Edinha Diniz, em 2005 e 2006. E porque acredito que sua simpatia e seu temperamento vivo deveriam ser mais divulgados.
João foi uma das pessoas mais gentis e generosas que conheci. Alegre, sincero, falante, intenso.
Faro era amigo antigo de João. O diretor do programa Ensaio, da TV Cultura, já havia gravado dois programas com o artista: na TV Tupi, com Caetano e Gal, em 1972, e outro a partir de um show na Bahia, nos anos 80. Não se viam há muitos anos. Fomos para o Rio, e João desmarcou o encontro dois dias seguidos, por causa de uma indisposição. Eu não acreditava muito que o encontro aconteceria e tinha receio que Faro ficasse desapontado. Até que fomos para a casa da escritora Edinha Diniz, amiga comum, em um final de tarde. Alí Edinha falou várias vezes com João no telefone, procurou me conhecer (conversamos muito sobre os grupos vocais brasileiros), e lá pelas nove da noite fomos enfim convidados para jantar no apartamento de João, no Leblon.
No elevador eu entendi o que estava acontecendo e disse “não acredito que vou conhecer João Gilberto”. Edinha me alertou dizendo que João era muito reservado e não gostava de reações efusivas nem que o chamassem de gênio.
Esperava encontrar alguém sério e calado, quando abriu a porta de serviço do apartamento um homem grande, muito branco, e com o sorriso maior e mais sincero que já vi, dizendo “Farinho...”, com um abraço. Antes que ele pensasse como me cumprimentar dei um beijo em seu rosto.
Foi uma noite encantada, com muita música, conversa, lagostins, chocolate e hospitalidade.
Ouvindo a voz de João sem os fios e os microfones pensei que tinha mais graves, era mais encorpada e ainda mais aveludada e agradável. Ficaria ouvindo por horas, e ficamos, mesmo. Efusivo, ligou para Miúcha para convidá-la, mas ela não podia ir. Ficou imediatamente contrariado, mas logo retomou o semblante sorridente. Faro sugeriu que fizessem um programa sobre Marino Pinto, João adorou a ideia. Com o violão no colo, João passeava por vários assuntos, lembranças, indignações, histórias engraçadas. Ouvimos cds dos Namorados da Lua e Anjos do Inferno, João falou com carinho de São Paulo, da Rita Lee e Roberto, da Gracinha, do Vavá, seu irmão, de futebol, dos EUA e do Brasil, do Lúcio Alves e do Tonzinho. Disse que era uma pena a cortina ter de ficar fechada porque da janela dava pra ver o mar. Eu perguntei "posso olhar um pouquinho?",
ele disse, educadamente, "Selminha, se quiser abrir pode abrir, mas se eu fosse você não abriria... as pessoas são muito curiosas...”.
O vinho, os licores e os lustres japoneses completavam a sensação de aconchego. Fomos embora às quatro da madrugada; estava clareando quando chegamos em Guaratiba, flutuantes e musicais.
O cochilo do João
Na primeira visita que fiz a João levei o CD do grupo vocal Arirê, de que fazia parte, para dar a ele de presente. Era um CD em homenagem aos grupos vocais antigos, produzido por Faro, e como João sabia tudo sobre os grupos vocais brasileiros achei que poderia se interessar. Certa altura, muito gentilmente, ele colocou o CD para tocar, queria ouvir um pedacinho. Faro ia explicando sobre as versões que fizemos para os arranjos dos Namorados da Lua, entre outros. João ia ouvindo, Baixinho escolhendo algumas faixas... então disse "mostra o Lamento Sertanejo pra ele", que não era versão de grupo nenhum, era um arranjo meu, solo meu. Muito envergonhada lá fui eu escolher a faixa. João encostou a cabeça no sofá e fechou os olhos. A música era muito delicada, só com viola, acordeon e 4 vozes femininas. Na repetição da música notamos, eu, Faro e Edinha, que João havia cochilado. Eram três da manhã e achei que pudesse estar com sono. Mas morri de vergonha e constrangimento por estar talvez entediando o genial artista... Baixo fechou a cara, um pouco ofendido. Quando acabou a faixa João acordou e disse: "eu dormi no meio da música? Isso é muito difícil... bom sinal.”
Aula de música
Então João começou a falar sobre a prática: Cantar é fácil. Mas é um músculo, tem que treinar.
Ele dizia, voz é vento. Sobre as divisões, disse que a gente deve experimentar várias, diferentes, em cada frase, procurando deixar natural e facilitar o entendimento da letra. Deu exemplos, cantou uma frase com uma divisão (infelizmente não me lembro a música), depois fez outra divisão bem diferente para a mesma frase e disse, essa não ficou boa, fez de outro e outro jeito, e disse até gostar, então você escolhe.
Sobre o violão dizia que os acordes são como vozes de um grupo vocal: as movimentações têm de ser sutis, e cada voz é uma melodia, poderia ser cantada, deve ter sua independência, seu sentido. Ele pensava as harmonias como vozes. Dava exemplo de mudanças de acordes bruscos ou com saltos e dizia, isso não
soa, não ficaria bom uma voz cantar esse salto. E a mão direita era o tamborim e o surdo... e que tinha grande prazer em transformar músicas que não eram samba em samba, por exemplo, "A valsa de quem não tem amor", que teve que sofrer um ajuste para ser tocada em dois, porque, claro, era ternária, era uma valsa.
Lembro agora de outras que viraram samba, Besame mucho, Ave maria no morro, You do something to me, Málaga, Guacira...
Outra fala de João que me encantou. Não lembro as palavras exatas, mas disse que antes mudava as linhas melódicas das músicas, como um co-autor. Deu como exemplo a música Segredo, do Herivelto Martins... “quando o infortúnio nos bate à porta”... e cantava "porta" com outra melodia, diferente da original, como está na gravação pirata na casa de Chico Pereira, e como cantou na primeira estrofe, no CD “João” (na repetição canta a original). E então, com o tempo, concluiu que não deve mudar as melodias. As harmonias sim, ele mudava, criava novas, e mudava outra vez... dava exemplos, isto pode ser assim mas assim também, antes tocava isso deste jeito, agora toco deste... Falou sobre o cuidado que tinha para comunicar com clareza a letra e a melodia destes antigos compositores, considerados por ele grandes, mestres.
Nesses encontros quase que só tocava este repertório antigo: Vicente Paiva, Marino Pinto, Herivelto Martins, Caymmi, Janet de Almeida, Orestes Barbosa, Lúcio Alves... Pouco ouvi Tom Jobim, Triste, Wave, Corcovado, uma vez... Lembro mais de É preciso Perdoar, Eu sambo mesmo, Siga, Treze de ouro, Rosinha, e Hino ao sol, de Billy Blanco e Jobim: “quero morrer em um dia de sol..."