Para reviver e evitar esquecer dos detalhes, estou colhendo impressões e lembranças das três visitas que fiz a João Gilberto, a convite de Fernando Faro e Edinha Diniz, em 2005 e 2006. E porque acredito que sua simpatia e seu temperamento vivo deveriam ser mais divulgados.
João foi uma das pessoas mais gentis e generosas que conheci. Alegre, sincero, falante, intenso.
Faro era amigo antigo de João. O diretor do programa Ensaio, da TV Cultura, já havia gravado dois programas com o artista: na TV Tupi, com Caetano e Gal, em 1972, e outro a partir de um show na Bahia, nos anos 80. Não se viam há muitos anos. Fomos para o Rio, e João desmarcou o encontro dois dias seguidos, por causa de uma indisposição. Eu não acreditava muito que o encontro aconteceria e tinha receio que Faro ficasse desapontado. Até que fomos para a casa da escritora Edinha Diniz, amiga comum, em um final de tarde. Alí Edinha falou várias vezes com João no telefone, procurou me conhecer (conversamos muito sobre os grupos vocais brasileiros), e lá pelas nove da noite fomos enfim convidados para jantar no apartamento de João, no Leblon.
No elevador eu entendi o que estava acontecendo e disse “não acredito que vou conhecer João Gilberto”. Edinha me alertou dizendo que João era muito reservado e não gostava de reações efusivas nem que o chamassem de gênio.
Esperava encontrar alguém sério e calado, quando abriu a porta de serviço do apartamento um homem grande, muito branco, e com o sorriso maior e mais sincero que já vi, dizendo “Farinho...”, com um abraço. Antes que ele pensasse como me cumprimentar dei um beijo em seu rosto.
Foi uma noite encantada, com muita música, conversa, lagostins, chocolate e hospitalidade.
Ouvindo a voz de João sem os fios e os microfones pensei que tinha mais graves, era mais encorpada e ainda mais aveludada e agradável. Ficaria ouvindo por horas, e ficamos, mesmo. Efusivo, ligou para Miúcha para convidá-la, mas ela não podia ir. Ficou imediatamente contrariado, mas logo retomou o semblante sorridente. Faro sugeriu que fizessem um programa sobre Marino Pinto, João adorou a ideia. Com o violão no colo, João passeava por vários assuntos, lembranças, indignações, histórias engraçadas. Ouvimos cds dos Namorados da Lua e Anjos do Inferno, João falou com carinho de São Paulo, da Rita Lee e Roberto, da Gracinha, do Vavá, seu irmão, de futebol, dos EUA e do Brasil, do Lúcio Alves e do Tonzinho. Disse que era uma pena a cortina ter de ficar fechada porque da janela dava pra ver o mar. Eu perguntei "posso olhar um pouquinho?",
ele disse, educadamente, "Selminha, se quiser abrir pode abrir, mas se eu fosse você não abriria... as pessoas são muito curiosas...”.
O vinho, os licores e os lustres japoneses completavam a sensação de aconchego. Fomos embora às quatro da madrugada; estava clareando quando chegamos em Guaratiba, flutuantes e musicais.
O cochilo do João
Na primeira visita que fiz a João levei o CD do grupo vocal Arirê, de que fazia parte, para dar a ele de presente. Era um CD em homenagem aos grupos vocais antigos, produzido por Faro, e como João sabia tudo sobre os grupos vocais brasileiros achei que poderia se interessar. Certa altura, muito gentilmente, ele colocou o CD para tocar, queria ouvir um pedacinho. Faro ia explicando sobre as versões que fizemos para os arranjos dos Namorados da Lua, entre outros. João ia ouvindo, Baixinho escolhendo algumas faixas... então disse "mostra o Lamento Sertanejo pra ele", que não era versão de grupo nenhum, era um arranjo meu, solo meu. Muito envergonhada lá fui eu escolher a faixa. João encostou a cabeça no sofá e fechou os olhos. A música era muito delicada, só com viola, acordeon e 4 vozes femininas. Na repetição da música notamos, eu, Faro e Edinha, que João havia cochilado. Eram três da manhã e achei que pudesse estar com sono. Mas morri de vergonha e constrangimento por estar talvez entediando o genial artista... Baixo fechou a cara, um pouco ofendido. Quando acabou a faixa João acordou e disse: "eu dormi no meio da música? Isso é muito difícil... bom sinal.”
Aula de música
Então João começou a falar sobre a prática: Cantar é fácil. Mas é um músculo, tem que treinar.
Ele dizia, voz é vento. Sobre as divisões, disse que a gente deve experimentar várias, diferentes, em cada frase, procurando deixar natural e facilitar o entendimento da letra. Deu exemplos, cantou uma frase com uma divisão (infelizmente não me lembro a música), depois fez outra divisão bem diferente para a mesma frase e disse, essa não ficou boa, fez de outro e outro jeito, e disse até gostar, então você escolhe.
Sobre o violão dizia que os acordes são como vozes de um grupo vocal: as movimentações têm de ser sutis, e cada voz é uma melodia, poderia ser cantada, deve ter sua independência, seu sentido. Ele pensava as harmonias como vozes. Dava exemplo de mudanças de acordes bruscos ou com saltos e dizia, isso não
soa, não ficaria bom uma voz cantar esse salto. E a mão direita era o tamborim e o surdo... e que tinha grande prazer em transformar músicas que não eram samba em samba, por exemplo, "A valsa de quem não tem amor", que teve que sofrer um ajuste para ser tocada em dois, porque, claro, era ternária, era uma valsa.
Lembro agora de outras que viraram samba, Besame mucho, Ave maria no morro, You do something to me, Málaga, Guacira...
Outra fala de João que me encantou. Não lembro as palavras exatas, mas disse que antes mudava as linhas melódicas das músicas, como um co-autor. Deu como exemplo a música Segredo, do Herivelto Martins... “quando o infortúnio nos bate à porta”... e cantava "porta" com outra melodia, diferente da original, como está na gravação pirata na casa de Chico Pereira, e como cantou na primeira estrofe, no CD “João” (na repetição canta a original). E então, com o tempo, concluiu que não deve mudar as melodias. As harmonias sim, ele mudava, criava novas, e mudava outra vez... dava exemplos, isto pode ser assim mas assim também, antes tocava isso deste jeito, agora toco deste... Falou sobre o cuidado que tinha para comunicar com clareza a letra e a melodia destes antigos compositores, considerados por ele grandes, mestres.
Nesses encontros quase que só tocava este repertório antigo: Vicente Paiva, Marino Pinto, Herivelto Martins, Caymmi, Janet de Almeida, Orestes Barbosa, Lúcio Alves... Pouco ouvi Tom Jobim, Triste, Wave, Corcovado, uma vez... Lembro mais de É preciso Perdoar, Eu sambo mesmo, Siga, Treze de ouro, Rosinha, e Hino ao sol, de Billy Blanco e Jobim: “quero morrer em um dia de sol..."